Amostra: Desculpe, esqueci o paraquedas

capa do livro desculpe esqueci o paraquedas

Revolução

Oi! Meu nome é Chélia Maria. A família do meu pai tem obsessão por H, por isso ele transformou Célia em Chélia. Esse livro é uma espécie de diário da minha vida. Que não é uma vida, como posso dizer, invejável. Muito pelo contrário.

Quem gostaria de ter depressão, ansiedade, problemas de autoestima e dificuldade em expor sua opinião? Bom, existe gente para tudo, mas, até agora, não conheci ninguém que se orgulhasse disso. Porém, se você não me conhece além de conversas superficiais como: “Oi, tudo bom?”, “Bom dia!”, “E as novidades?” Jamais imaginará um terço dos conflitos que andam comigo diariamente. Após anos lidando com isso, me tornei mestre no disfarce. Sorrio, pareço otimista, uma pessoa sem problemas. Até porque meus problemas, para muitos, não são problemas. Eu, inclusive, acreditei nisso por muito tempo. Às vezes, sendo bem sincera, ainda acredito. Parece confuso, mas vou explicar.

Se você diz:

“Eu tenho depressão!”

Ou:

“Eu sofro com crises de ansiedade!”

As pessoas não encaram da mesma forma, caso você dissesse:

“Eu sou hipertensa!”

“Tenho um coágulo na cabeça!”

“Sofro com crises de vômito!”

“Meu fígado tem gordura!”

Elas não entendem que carregar tristeza por anos é tão ruim, ou pior, do que ter febre por um mês. E ficar nervosa, com o coração disparado, a cabeça emitindo sinais de alerta para o corpo, sem nenhum motivo aparente, não é algo simples de resolver. Quem está lendo, que já passou ou passa por isso, também deve ter sentido uma espécie de prazo de validade. Por exemplo, se você continua deprimido depois de um mês, muitos vão dizer: “Ainda? Uma menina dessa, com tudo na vida; isso é falta de ocupação”.  “Outra vez isso?” “A vida tá passando, você precisa melhorar”. Ou seja, sua doença prescreveu.

Dois, três dias? Ok. Mas um mês? É frescura demais.

Escutei tanta coisa desse tipo que acabei acreditando ser a força de vontade, ou melhor, a ausência dela, o meu único problema. Se os julgadores, com base no “ouvi dizer”, diagnosticarem você como uma pessoa sem força de vontade, a culpa é única e exclusivamente sua.

O medo de sair de casa, o desânimo, a sensação de incapacidade, a vontade de não falar com outras pessoas, os pensamentos negativos, nada existe.

“Se você quiser mesmo, você consegue”. Eles dizem. Acontece que, por mais que você queira, não é simples de resolver. Ninguém fica bom de uma infecção ao acordar de manhã, olhar para o horizonte e gritar: “Uhuuu! Hoje eu me curo”. Com a depressão é a mesma coisa, leva tempo, remédios, terapias. O grito de positividade pode animar por dez minutos, meia hora, mas depois os sintomas voltam a atormentar.

É tão complexo que, mesmo depois de anos, me causa um certo medo escrever a palavra depressão. Eu tenho mesmo depressão? Não. Tenho? Acho que não. Nesse instante, já pensei mais de cinco vezes se não era melhor trocar por tristeza. É uma reação do meu cérebro com medo de julgamentos futuros. A terapia me ajudou a entender isso.

Como vocês podem ver, não apaguei a tal palavra, me mantive firme. E daí se me julgarem? Críticas sem fundamento não devem ser consideradas. Estou repetindo isso até agora. Tenho fé que, antes de terminar o livro, estarei convencida.

A lembrança mais viva da minha infância sou eu, aos seis anos, parando de me preocupar com o sabor das nuvens, para resolver conflitos familiares. Acreditava que o juramento feito pelas pessoas casadas era algo mágico e indestrutível. Se jurou ser fiel, não havia razão para descumprir. Os socos na mesa me alertaram para o contrário.

“Ligue para ela, agora!” Mamãe dizia enquanto esmurrava a mesa.

“Estou falando para você que não aconteceu nada, Michele”. Meu pai pediu para ela se acalmar.

“ ‘Ansiosa para o nosso segundo encontro!’ Qual mulher manda uma mensagem dessas para um homem casado? CASADO!” Ela deu outro soco na mesa.

Se ela não quebrasse a mesa, quebraria a mão. Outra coisa que não imaginava ser possível, mamãe esmurrando uma mesa.

Escondi-me atrás da escada. Eles continuaram a discussão. Mamãe exigia que meu pai ligasse para a tal mulher. Ele dizia que não tinha necessidade. Enfim, papai ligou.

A fulana disse que não aconteceu nada além de um jantar e um beijo de despedida no rosto. A mesma versão contada por meu pai. Ao que parece, mamãe não achou irrelevante o marido dela sair para jantar com outra mulher e se despedir com um beijo.

Ela subiu a escada em direção ao quarto e gritou que queria o divórcio.

Permaneci quieta. Quando não ouvi mais nada, saí de trás da escada para ir me esconder no meu quarto.

– Chelinha, papai precisa de um favor seu – meu coração acelerou. Ele estava no sofá, de frente para a escada.

– Oi, pai.

Antes de saber qual o favor, a vontade de chorar já apareceu. Meu cérebro de seis anos era inteligente o suficiente para entender que não seria uma coisa agradável para mim.

– Quero que converse com sua mãe. Ela quer abandonar a nossa família. Você precisa convencê-la a não fazer isso. Fale que vai embora comigo se ela insistir com essa história de divórcio.

Não queria falar nada daquilo, mas não tive coragem de negar. Saí andando pela casa, bem devagar, as pernas trêmulas, torcendo para não encontrar minha mãe. Para minha infelicidade, ela estava no terraço.

– Mãe?! Não se separe do papai, por favor – desabei no choro. Ela me abraçou e fez carinho em meus cabelos.

– Não fique assim, meu amor. Mamãe está aqui.

– Não quero ir embora com o papai. Nossa família vai acabar?

Falei entre um soluço e outro.

– Quem disse isso a você? Foi seu pai?

Confirmei com a cabeça.

– Eu vou conversar com ele, mas não se preocupe que jamais abandonaria você, tá bom? Vá tomar um banho para irmos ao cinema assistir àquele filme do peixinho.

– Tá bom.

Fui para o meu quarto tomar banho. Assim que abri a porta, me deparei com meu pai.

– E aí, o que ela disse? – Ele perguntou.

Ainda estava apavorada e meu nervosismo parecia irritá-lo.

– Que nunca vai me abandonar.

– Você falou tudo que eu te disse?

– Falei.

– Exatamente como eu disse?

– Acho que sim.

– Acha? Como é que você não sabe o que falou há cinco minutos, Chélia?

Enquanto eu só queria esquecer, papai exigia que eu lembrasse das palavras exatas. Segurei as lágrimas, mas elas voltaram a cair.

– Você só sabe chorar, não serve nem para dar um recado. Se fosse para falar de qualquer jeito, eu mesmo teria dito. Pensei que fosse mais inteligente, minha filha.

Ele saiu batendo a porta. Sentei no chão, as costas apoiadas na cama. Me esforcei para ser forte e impedir as lágrimas de caírem. Não deu certo.

A constatação dele virou lei. Nunca mais me senti inteligente. Quando eu ainda pensava que auto significava alto e, portanto, baixa autoestima não poderia existir, a minha já descia ladeira abaixo numa bicicleta sem freio.

Eles não se separaram. Um mês após a confusão, tudo voltou ao normal. Papai nunca falou a respeito da nossa conversa, fingiu ser um acontecimento qualquer.

Hoje, aos vinte e um anos, estou pior do que biscoito integral recheando um bolo de chocolate, totalmente perdida. Tem mais um detalhe, saí de casa. Meu pai me expulsou. Pela terceira vez ele disse: “se não estiver satisfeita, saia”.

Eu respondi: “tudo bem, EU SAIO”. Se foi certo ou errado, não sei. Deixei na conta de Deus. Aquela velha história de “Seja o que Deus quiser.”

O relógio, em cima da minha mesinha de cabeceira, marcava 17h45 quando mamãe abriu a porta do quarto.

– Chélia, pare um pouco de estudar e venha comer alguma coisa.

– Acho melhor esperar pelo jantar, mãe.

– O jantar ainda vai demorar, minha filha. Você passou a tarde inteira sem comer nada.

Poderia descer para lanchar ou continuar estudando Física, tentando resolver uma questão bem chata, que envolvia variação de energia cinética e já me atormentava por quarenta e cinco minutos. Decidi que era melhor parar um pouco. Peguei meu celular, um presente que ganhei da minha mãe há três anos, numa tentativa de me fazer voltar a ter contato com o mundo, e fui atrás dela.

Enquanto ela preparava o sanduíche, eu esperava na sala, mexendo no celular.

Primeiro, um barulho de chaves; depois, meu pai entrou em casa.

– Já está grudada nesse celular, Chélia?

Levei um susto.

– Não, pai. Parei agora para fazer um lanche.

– Minha filha, enquanto você não se dedicar totalmente aos seus estudos, seu sonho de ser médica não vai se realizar.

Permitam-me abrir um parêntese antes de continuar a história. O sonho de ser médica nunca foi meu. Meu pai sempre falou que a profissão de médico o fascinava e se não tivesse cedido à pressão de vovô, para estudar administração e assumir a direção da rede de livrarias pertencente à família, teria cursado Medicina. Um dia, de tanto ele falar, eu disse que iria pesquisar mais sobre a profissão e, talvez, se eu gostasse, poderia optar pela carreira médica. A partir daí, ele começou a dizer para todo mundo que escolhi ser médica aos doze anos de idade.

Quase um ano após essa conversa, ao sair da escola, vi um gato ser atropelado. Ele pulava e se debatia como se levasse choques. Alguns minutos depois, ele parou de se mexer e uma poça de sangue se formou próximo à cabeça dele. Desmaiei.

“Foi o sangue.” Falei ao abrir os olhos. “Sangue não faz ninguém desmaiar, minha filha. Deve ter sido o susto.” Papai me corrigiu. Não contestei, apesar de me sentir mal só de lembrar daquela poça de sangue.

Outro episódio marcante aconteceu aos quatorze anos. Fui ao enterro da avó de uma amiga minha. Mais um desmaio. O cheiro das rosas, o nariz da velhinha sufocado por algodão, pessoas indiscretas olhando cada detalhe da falecida. A pele dela estava acinzentada e alguém teve a ideia de passar um blush vermelho nas bochechas da velhinha. Senti o ar pesado, as pernas e as mãos gelarem, a visão ficar embaçada e caí.

Médicos podem não gostar de ver sangue ou pessoas mortas, mas eles não vão desmaiar por isso. Fui conversar com meu pai.

– Pai, acho que Medicina não é a profissão ideal para mim. Só de pensar em ver sangue e pessoas sem vida já me sinto mal.

– Você não vai desistir da sua profissão por uma besteira dessa, Chélia. É só questão de tempo para se acostumar.

Ele falou como se, em questão de dias, eu fosse encher uma bacia de sangue, pegar um barquinho de plástico e brincar de navegar pelo mar vermelho. Não daria certo, tinha certeza, mas aceitar aquela mentira era a solução dos meus problemas. Se eu me tornasse uma médica, papai ficaria orgulhoso e nunca mais duvidaria da minha inteligência.

Aos dezessete anos, fiz a primeira prova para tentar ingressar no curso de Medicina. Obtive uma nota muito próxima a dos aprovados e parou por aí. Não passei.

– Eu não acredito! – Meu pai disse quando viu que eu tinha sido reprovada.

Vidrada, olhando a tela do computador, eu só pensava em ser capturada por uma espaçonave e levada para um planeta distante. Coisas assim poderiam acontecer de verdade. Viver um mês, quem sabe um ano, num planeta diferente, até os problemas perderem a importância. Infelizmente, posso dizer, por experiência própria, que não adianta se iludir. É você, com ou sem coragem, quem enfrentará.

– Que vergonha, meu Deus! – Ele voltou a falar.

Saí da inércia e tentei me defender. Aquelas horas em que o silêncio vale ouro e você não percebe.

– Não foi tão ruim. Eu quase passei, pai.

– Uma menina que só vive para estudar…

Ele balançou a cabeça em negação.

– Quase passar significa não passar. O quase é um fracasso, minha filha.

Depois dessa reprovação ainda vieram mais três. Em todas cheguei muito perto, uma ou duas questões me separaram da glória e me mantiveram na ruína. Não consigo expressar o quanto doía chegar tão perto e falhar.

Carregava comigo o peso de ser um fracasso total e meu pai não deixava por menos. Olhava-me com desprezo, como se eu fosse uma preguiçosa, sem determinação, e não perdia a oportunidade de fazer piadas, insinuando minha falta de inteligência. Eu tentava ignorar, ser forte e continuar lutando sozinha, já que havia abandonado a terapia, por motivos que contarei daqui a pouco.

Porém, na manhã do fatídico dia, Doutor Vitoriano, meu antigo psiquiatra, uma das poucas pessoas que sabia meu número, me enviou uma mensagem perguntando como eu estava e no final tinha uma reflexão:

“Ninguém, além de você, está no controle da sua felicidade.
Portanto, ajuste as velas e corrija o rumo.”
Marcio Kühne

Pensei naquela mensagem o dia inteiro.

Aqui eu fecho o parêntese.

Levantei do sofá com uma coragem nunca vista antes.

– Sabe de uma coisa, pai? Eu não quero ser médica.

– O quê?

Pude sentir o espanto na voz dele.

– Isso mesmo que o senhor ouviu. Não vou estudar Medicina. Quero fazer Gastronomia.

– Gastronomia? Você acha que investi tanto dinheiro na sua educação para você brincar de fazer comida? E vai ganhar dinheiro como? Vendendo os bolos secos que eu e sua mãe fingimos gostar?

Ele falou para me atingir e conseguiu. Meus bolos eram fofinhos e gostosos, mas eu não tinha confiança em mim.

– Não fale assim, Mhaurício! Você cozinha muito bem, meu amor – minha mãe tentava acalmar a situação.

– Pelo menos serei feliz. Não quero viver fingindo, vendo sangue e tentando não desmaiar.

– Você não sabe o que está dizendo. Vá estudar e pare de falar bobagens.

– Não é bobagem. Eu quero cursar Gastronomia.

– Enquanto eu for responsável pelos seus estudos, não vou deixar você cometer uma loucura dessa.

– Você não respeita meus sonhos. Nunca respeitou.

Jamais, em toda a minha breve existência, imaginei que teria coragem de confrontar meu pai.

– Jovens e seus sonhos. A vida real é muito diferente. E já chega dessa conversa.

– NÃO!

A incredulidade se estampou no rosto dele. Tenho certeza de que papai viu um chapéu pontudo na minha cabeça, verrugas gigantes surgirem no meu rosto e uma vassoura entre as minhas pernas.

– Antes de querer ter sonhos, você precisa se sustentar. A casa é minha, quem dita as regras sou eu, se não estiver satisfeita, pode sair.

– Tudo bem, EU SAIO!

A primeira vez que ele indicou a porta da saída para mim foi devido a um programa de culinária. Era a final do programa, eu estava ansiosa para saber quem seria o vencedor, mas acabava tarde, por volta de 1h da manhã. Meu pai entrou no meu quarto, disse que eu desligasse a televisão e fosse dormir.

– Por favor, pai. É o último bloco. Amanhã não preciso acordar cedo.

Eu estava de férias da escola e do curso de férias, e era véspera de final de semana.

– Vá dormir, Chélia. Você tem que manter seu sono regular para não atrapalhar o bom funcionamento do seu corpo.

Ainda tentei argumentar, mas não adiantou. Desliguei a televisão e apaguei todas as luzes. Ele saiu. Após dez minutos, liguei a TV novamente, no volume mais baixo.  Meu rosto encostado na tela para tentar ouvir. Era a avaliação do último prato. Consegui ver as notas do primeiro finalista e meu pai abriu a porta outra vez. Acusou-me de não ter responsabilidade, de ser negligente com meus estudos, que a vida não era brincadeira e que programas de culinária não me levariam a lugar nenhum.

– Mas amanhã eu não tenho aula! Todo mundo dorme tarde quando não tem aula.

– Por isso mesmo. Você não é todo mundo. Se não quiser ser apenas mais uma entre tantas, tem que estudar todos os dias, esteja de férias ou não, e isso inclui dormir cedo.

Insisti que estava acabando e ele se irritou. Disse que as regras da casa eram ditadas por ele e, caso eu não estivesse satisfeita, podia ir embora. Levei um choque de duzentos e vinte volts no peito. Nunca imaginei ser apresentada à porta da rua com tanta facilidade.

A segunda vez foi por causa do meu primeiro namorado, vocês saberão os detalhes em breve. Essa doeu mais do que andar descalço em brasas. Eu nunca andei, mas é aquele tipo de coisa que você não precisa fazer para saber que dói.

E a terceira foi hoje.

Peguei tudo que consegui no meu quarto e saí correndo. Minha mãe veio atrás pedindo para eu voltar.

– Minha filha, tenha calma. Você não pode sair de casa. Seu pai fala essas coisas da boca pra fora.

Mamãe não só perdoou a traição, como tentava justificar todas as falhas dele. “Pelo bem da família”, ela dizia. Pelo bem dela é que não podia ser.

Abri o portão do condomínio.

– Filha! – Mamãe falou. A voz saiu estranha, um pouco engasgada.

Olhei para trás. Ela chorava na entrada do prédio, apoiada na parede. Antes de pensar em desistir, corri e entrei no primeiro ônibus que passou na rua.

O ônibus estava vazio. Não sei a hora exata em que saí de casa, mas deveria ser entre 18h e 18h30. Imaginei, pelo horário, que teria muitos passageiros, mas não havia ninguém além do motorista. Passei pela catraca e sentei na primeira cadeira.

As palavras do meu pai se repetiam na minha cabeça. O choro foi inevitável. Tentei não fazer barulho, mas um soluço escapou. Senti olhos me observando. Era o motorista pelo retrovisor. Virei o rosto para o outro lado. Entre uma lágrima e outra percebi que as casas, os prédios, as árvores, tudo começou a passar rápido demais. Ele pisou no acelerador, tenho certeza. Estávamos a mais de 100 km/h. Não era possível ver o ponteiro do velocímetro, mas o vento da janela quase arrancava meus cabelos.

Talvez esse fosse o meu destino. Morrer, aos vinte e um anos de idade, num acidente de ônibus. Minha vida encerrada numa manchete de jornal policial:

“Jovem fracassada entra em confronto com o pai e o final é trágico.”

Após uns cinco minutos, entramos num local com vários ônibus estacionados um ao lado do outro. Paramos. Não morri!

– A viagem acabou, mocinha. Aqui é o terminal – o motorista largou a direção e falou olhando para mim, do outro lado da catraca.

– Terminal?

– Sim, a garagem. O próximo ônibus sai em trinta minutos. Você pode esperar lá fora.

O desespero atingiu meu corpo. A coragem desapareceu. Iria morar na rua? Sozinha?

– Não sei aonde ir.

Tentei falar sem chorar.

Ele coçou o bigode e passou a mão no topo da cabeça.

– Por quê? Perdeu a memória?

– Não. Meu pai me expulsou de casa.

As sobrancelhas dele subiram, mostrando olhos arregalados.

– Meu Jesus. Uma menina tão nova. Tá grávida, é?

– Não. Ainda sou virgem.

Revelei, a um estranho, a minha vida sexual inexistente. Ele aparentou desconforto com aquela informação. Deduzi pelo pigarro repentino que surgiu na garganta dele.

– Continue se resguardando. É um bom caminho. Se eu pudesse te ajudava, mas já tenho quatro filhos. Minha casa é mais lotada que galinheiro em dia de chuva.

Um galinheiro, certamente, não é um lugar confortável num dia chuvoso. Respirei fundo. Iria descer, esperar o próximo ônibus e rodar pela cidade até decidir qual a rua mais segura para dormir. Peguei minha mala com estampas de coração, a bolsa e me levantei. Uma ideia tão maravilhosa, que deve ter sido enviada do céu, iluminou meus pensamentos. Como eu não pensei antes? Isabelle seria minha salvação.

– Acho que já sei onde posso ficar!

Abri um sorriso, larguei a mala e procurei meu celular na bolsa. Não era possível… papel de bala, moeda de dez centavos, chocolate velho, caneta sem tampa. Virei todo o conteúdo da bolsa em cima da cadeira do ônibus. Nada!

– Esqueci meu celular em casa. Sou um desastre mesmo. E agora, como vou falar com Isabelle?

– Pegue o meu. Mas não demore.

O motorista empurrou a catraca e parou ao meu lado com o celular na mão.

– Eu não sei o número dela.

– Desse jeito é difícil sobreviver, mocinha. Tem que ser mais esperta. Você sabe onde ela mora?

Tudo bem, mereci ouvir isso.

– Sei, é uma casa pequena, com portão enferrujado. O bairro é nobre, cheio de prédios milionários, a rua dela é a única com casas humildes. A desigualdade social fica bem nítida.

Ele continuou olhando para mim. Acho que não entendeu.

– Na minha rua tem mais de dez portões enferrujados. Imagine se eu for procurar por todos da cidade?! Quero saber o nome do bairro, o número da casa. Você tem ideia?

Tentei ser detalhista, pelo jeito ele não gostou.

– Sim, claro. Mas como vou saber se ela está em casa?

– Vou te ensinar uma coisa. É mais fácil negar ajuda pelo telefone do que pessoalmente. Pode ser a sua sorte. Pegue as coisas e vamos.

Ele não conhecia o grande coração de Isabelle. Ela não me negaria ajuda. Tudo ia dar certo.

O carro de seu José Antônio – vi seu nome no crachá preso à camisa – estava parado do lado de fora da garagem dos ônibus. Chamar de carro, na verdade, era um elogio. Apesar de ter direção, bancos e marcha, um bloco de ferrugem com rodas seria uma definição mais adequada.

– Obrigada pela ajuda. Seu carro deve ter um motor muito bom.

Não entendam como falsidade. Foi o elogio mais sincero que encontrei. Se tudo estava destruído e o carro continuava funcionando, o motor, certamente, era bom. Ele virou a cabeça desconfiado, fez uma breve análise do meu comentário e abriu um sorriso.

– O motor dos carrinhos de hoje não chega aos pés do meu. Esse aqui é uma máquina, só tá precisando de alguns reparos.

Fomos o caminho inteiro conversando sobre a capacidade extraordinária do motor do carro.

Chegamos à casa de Isabelle. Seu José teve dificuldade para estacionar, de tão estreita que era a rua.

– Vá olhar se sua amiga está em casa. Eu fico esperando.

Parei em frente ao pequeno portão e senti um alívio ao ver a luz da sala acessa. Ia começar a chamar por Isabelle quando escutei ela gritar: “Saia daqui! Agora! Você tá esperando o quê? Vá embora!”

O quesito boas-vindas não foi bem como imaginei. Ela não me reconheceu?

“Saaaia! Eu vou chamar a polícia!” Isabelle voltou a gritar.

Olhei para seu José. Ele me observava de dentro do carro. Se não foi uma alucinação, escutei ele dizer: “Coitada”!

“Eu te amo, meu amor. Você entendeu tudo errado”. Dênis, o namorado de Isabelle, que eu só conhecia por fotos, apareceu na porta sendo empurrado por ela.

“Mentiroso! Vá embora!”.

Não era comigo, respirei mais tranquila. Dênis se aproximou da calçada e seu José bateu a porta do carro com força.

– Você ama quem, seu desgraçado? – Ele gritou olhando para Dênis.

– Seu Tonho? O senhor entendeu errado. Ela é minha amiga. Amiga de longas datas.

– Pare de mentir, Dênis. Namoramos onze meses.

Isabelle terminou de falar e me viu.

– Chélia? Como chegou aqui? Amiga, você não acredita o que eu descobri. Ele é noivo de outra.

– A outra é a minha filha, eles estão de casamento marcado para o próximo mês – seu José arrastou Dênis pela gola da camisa e o pressionou contra a porta do carro.

– Como você teve coragem de fazer isso com Josefa? Sempre desconfiei que você não prestava. Agora suma daqui e nunca mais chegue perto da minha filha ou eu arranco as suas bolas com os dentes.

Quem imaginaria que um senhor de óculos, bigode, cabelos grisalhos e testa enrugada seria capaz de arrancar as bolas de outro com os dentes? As pessoas podem esconder ideias loucas. Dênis correu numa velocidade inacreditável. Eu faria o mesmo.

Isabelle tentou me contar como descobriu a traição do namorado, mas caiu no choro.

– Não fique assim, mocinha. Tem muito homem honesto e solteiro por aí. Você encontrará um bom.

– Se for honesto e solteiro, com certeza, não vai gostar de mim. Só arrumo desgraça. O senhor não tá entendendo. É mais que um dedo podre, é uma vida inteira de tragédias.

– Ah, então você pode dar certo com meu filho. Ele também só arruma mulher sem futuro.

Sorri da expressão que Isabelle fez.

– Não acredito que aquele saco de ossos amassou a porta do meu carro.

– Um a mais não vai fazer diferença – Isabelle provocou.

– Ora não vai. Meu carro é quase novo. Só precisa de alguns reparos.

Ele alisou a porta amassada com um olhar triste.

– Desculpe ter colocado o senhor no meio dessa confusão. Assim que conseguir um emprego posso te ajudar com o conserto do carro.

Embora fosse preciso muito mais do que desamassar a porta, gostaria de ajudá-lo. Nunca pensei que o motorista, ou melhor, seu José Antônio, pudesse ser tão legal comigo.

– Esqueça isso, menina. Você me fez um favor. Só assim para eu livrar a minha filha daquele desgraçado.

Retirei minha mala do carro e me despedi com um abraço. Seu José entrou em sua máquina-móvel e foi embora pela rua escura.

– Não acredito que seus pais deixaram você vir aqui. Aconteceu um milagre nesse feriado santo? – Ela perguntou enquanto prendia um cadeado no portão enferrujado, tão baixo que qualquer pessoa pularia.

Nada tinha lógica naquele dia.

Um barulho alto invadiu o quintal.

– Deite no chão, Chélia! Isso são tiros!

– Tiros? Ai meu Deus!

– Socorro!!!! – Alguém gritou.


Apagaram as luzes

– Socorro!!!!! – Gritaram novamente.

A voz não era estranha.  

– Me ajudem! Tenho quatro filhos para criar!

Meu coração deu um pulo quando identifiquei a voz. Seu José Antônio.

– Isabelle, pelo amor de Deus, estão matando seu José. Precisamos fazer alguma coisa.

– Os tiros não param, Chélia. Se sairmos daqui vamos ser baleadas também.

Eu nunca enfrentava ninguém, fugia das discussões e sempre tentava passar despercebida. Mas, naquele dia, após tomar a decisão mais louca da minha vida, certa ou errada, não importava agora, a coragem estava em alta e não deixaria a pessoa que me ajudou ser atingida por tiros sem tentar salvá-la. Se fosse para ser meu fim, que fosse com honra. Levantei!

– Chélia, sua maluca, volte aqui.

Não atendi ao pedido de Isabelle. Estufei o peito, coloquei as mãos na cintura, segurei meus revólveres imaginários e fui em direção à rua.

Chélia Maria, o gatilho mais rápido do Oeste.

Essa era eu, forte, corajosa, destemida.

As pernas não entenderam muito bem a nova Chélia e tremiam um pouco/muito.

Parei no meio da rua, pronta para o duelo. A iluminação era fraca, mas consegui ver seu José. Ele estava a alguns metros de distância, pendurado na janela do carro, com os braços esticados, sendo puxado por uma mulher. O barulho dos tiros continuava. Não identifiquei de onde vinha.

– O que está acontecendo? – Gritei.

– Socorro, menina! O carro endoidou.

O carro? Cheguei um pouco mais perto e só então entendi. Os tiros, que não eram tiros, quer dizer, eram tiros, mas não de revólver, saíam do carro dele. Parecia uma pipoqueira gigante estourando o milho.

POW! POW! POW! POW!

Pressionei meus lábios para controlar a vontade de sorrir. Ele não parava de resmungar e a senhora, que tentava ajudá-lo, tinha uma expressão de desespero, quase pânico.

– Vamos, me puxe com mais força – ele disse para a senhora.

– Estou tentando. Você é pesado.

Ele voltou a resmungar e não aguentei. Sorri até escorrerem lágrimas. Quanto mais eu tentava parar, mais eu sorria.

– O que tem de tão engraçado aqui? Pare de riso besta e venha me ajudar. Esse carro pode explodir a qualquer momento. Estou preso. A porcaria do sapato enganchou em alguma coisa, não consigo soltar e a porta não abre.

Tentei manter a seriedade. Se concentra, Chélia.

– A outra porta também emperrou?

– Você acha que antes de me enfiar nessa janela não tentei abrir as duas portas?

Não sei o que aconteceu comigo, qualquer palavra que ele falava, eu sentia vontade de sorrir. Escondi meu rosto e respirei fundo duas vezes para evitar uma nova crise de riso.

– Só perguntei para ter certeza, não precisa ficar nervoso!

– Numa situação dessas ainda tenho que ficar mostrando os dentes para os passarinhos.

– Mostrar os dentes para os passarinhos é o mesmo que sorrir? – Perguntei.

Juro que não queria irritá-lo. Foi, somente, questão de curiosidade.

– Não me falta mais nada! Ter que brincar de “O que é o que é” a essa altura. Deixe de conversa à toa e me tire logo daqui!

Resolvi ficar quieta. Não era um bom momento para diálogo. Fui até a janela do passageiro e entrei. Foi fácil encontrar o problema, o cadarço do sapato prendeu na marcha. Parecia que alguém havia dado um nó. Acredito que, de tanto ele balançar o pé, enganchou ainda mais. Comecei a soltar o cadarço quando ouvi Isabelle gritar:                                                                              

– Chélia, cadê você???? Eu já chamei a polícia! Vocês vão ser presos, bandidos safados! Chélia?????

Olhei pelo vidro de trás e Isabelle segurava uma pedra enorme nas mãos. Como será que ela conseguiu aquilo? Arrancou metade da calçada?

– Eu vou é embora daqui! – A senhorinha soltou os braços de seu José e saiu caminhando com passinhos curtos e rápidos.

A sorte dele não estava em alta. Nesse exato momento, eu havia desprendido o cadarço. O coitado voou com destino certo, o chão.

– Ai! Ai! Ai! Meus cotovelos! Ai! Ai! Ai!

Para não bater com o rosto no asfalto, ele apoiou o impacto da queda nos cotovelos. Seus gritos revelaram que não foi uma boa escolha.

Guardem esta dica: “Não usem seus cotovelos como amortecedores.”

– O que está acontecendo aqui?  – Isabelle parou ao lado dele, com os braços levantados, segurando a pedra em cima da cabeça.

– Abaixe isso! Onde eu fui me meter, meu Jesus Cristo?                                                   

– Isabelle?! Já estou saindo – falei colocando a cabeça para fora do carro.

Ela me ajudou a passar pela janela e, finalmente, percebeu quem era o atirador.

– AHAHAHAHAHAHAHAH. Não eram tiros de verdade. AHAHHAHAH. O atirador é o carro.

POW!

Ocorreu um estouro monstruoso, seguido de fumaça. Começamos a correr. A essa altura, a maioria dos vizinhos estavam no portão, preocupados com aquele show pirotécnico. Para uma pessoa que a vida se resumia à escola, casa e consultórios médicos, as aventuras daquele dia já dariam para uma vida inteira, mas não parou por aí.

– Cuidado! O cachorro se soltou!

Se alguém falar algo parecido numa situação dessas, não olhe para trás. Eu olhei. O cachorro, além de grande, exibia presas bem intimidadoras.

– Ahhhhh!!!! – Gritei e atingi uma velocidade olímpica. Eu sou a prova viva de que superamos nossos limites no desespero.

– Valha-me Deus. É um touro! – Seu José cometeu o mesmo erro que eu e também olhou para trás.

– Pingo! Volte aqui! – Gritaram, mas Pingo, que estava mais para tempestade, continuou nos perseguindo.

Não havia tempo para abrir o portão, pulamos o muro e fechamos a porta. Pingo parou na calçada. Agradeci a meu anjo da guarda por estar intacta. Uma mulher apareceu minutos depois com uma guia na mão e o levou.

– Minha mãe do céu. Não tenho mais idade para isso – seu José colocou a mão no peito. A respiração descompassada. Se eu, com menos da metade da idade dele, estava quase desmaiando, imagine a situação em que ele se encontrava.

Ele voltou a falar.

– Se eu contar, não tem quem acredite. Além de tudo, ainda arrebentei meus cotovelos.

– Isabelle chegou assustando a mulher com uma pedra maior do que ela. Onde você arranjou aquilo? – Perguntei, o coração ainda agitado.

– O muro da vizinha está todo rachado. Peguei um pedaço, mas vou colocar de volta no lugar. 

Começamos a sorrir, tudo era muito surreal.

– Eu não sei como meu carro endoidou daquele jeito. Tava bonzinho e de repente começou a fazer aqueles barulhos estranhos. Foi aquele Dênis, safado. Amassou a porta e deve ter desregulado alguma outra coisa.

Qualquer pessoa, mesmo míope, veria que o carro continuava andando por um milagre. Mas eu não ia estragar a percepção de seu José com uma dose de realidade. Quem nunca se iludiu com alguma coisa na vida que atire a primeira pedra. Eu mesma já comprei uma calça jeans com o tecido todo amassado, cheio de pequenas ondas. Passei um mês usando a calça, achando que as ruas eram passarelas e a modelo principal – eu – estava um arraso.

Certo dia, indo à feira com a minha mãe, me deparo com uma mulher usando uma calça exatamente igual à minha. Ela também ostentava a expressão de orgulho, de quando estamos nos sentindo bonitas. As pernas da mulher pareciam disformes, o efeito provocado pelas ondulações ressaltava os defeitos.  Foi um choque. Assim que cheguei em casa, vesti a minha. Ficava igualmente horrível! Nunca mais usei a calça, até então, moderna e cheia de estilo. Não queria provocar o mesmo sentimento de decepção em seu José.

– E agora, o senhor vai fazer o quê? – Perguntei

– Vou ligar para o meu filho. Rebocamos até em casa e amanhã falo com um mecânico amigo meu.

Arlindo José, filho de seu José Antônio, chegou em quarenta minutos. Usava bermuda, camiseta regata e óculos escuros na cabeça.

– E aí, gatas, beleza? – Ele disse ao descer do carro.

– Beleza – respondi.

– Aprenda a respeitar as pessoas, Arlindo. Ninguém educado se dirige a uma mulher como gata.

– Pô, pai. Mas se são gatas mesmo. O espelho delas diz isso todos os dias. Se não gostarem de leite é porque são selvagens – ele piscou para mim.

Tão sexy quanto uma cuspida nos pés.

– Esse é o filho que te falei – ele disse para Isabelle.

– Ah, legal! – Ela respondeu sem demonstrar nenhum interesse num possível romance.

Melhor assim, Arlindo José era encrenca na certa.

Eles, José, pai e José, filho, amarraram uma corda no chassi do carro e prenderam no outro. Arlindo continuava piscando o olho para mim, pelo menos eu acho, a não ser que fosse um tique nervoso.

– Vou indo agora. Se cuidem e evitem se meter em confusão – seu José, o motorista mais prestativo e ranzinza do mundo, se despediu da gente.

Dei um abraço nele e agradeci por tudo. Ele pegou o número do celular de Isabelle e deixou o dele para o caso de alguma emergência. Acenei até eles dobrarem a rua.

– A senhora perdeu alguma coisa aqui? – Isabelle perguntou à vizinha da casa da frente, que continuava nos observando.

A mulher não respondeu e virou a cabeça para o outro lado.

– Sabia que ela tem um site de fofoca?

– Não – falei.

– Pois é. Chama-se Calçada. Ela sabe da vida de todo mundo – Isabelle disse alto.

Para evitar uma nova confusão, desejei boa noite e dei tchau. A mulher não respondeu.

– Ela é mal-educada, Chélia. Não entende nada além de fofocas.

– Tá bom, Isabelle. Vamos entrar.

Ela concordou. Peguei minha mala e a bolsa, jogadas dentro do quintal, e entramos em casa.

– O que aconteceu, Chelinha?

Não queria chorar, expliquei pausadamente tudo que havia acontecido, tentando manter a voz controlada. Ela me abraçou quando perguntei se podia ficar.

– A minha casa é a sua casa, Chélia. Só não tenho dinheiro e acabei de perder o emprego, mas, juntas, vamos conseguir alguma coisa.

Isabelle tinha razão. Ia dar certo. Precisava dar certo. Ela me entregou uma toalha de banho e foi preparar algo para comermos. Entrei no banheiro e, enquanto a água caía nas minhas costas, me dei conta do que aconteceu. Eu saí de casa. Saí de casa de verdade, com cinquenta reais no bolso, algumas roupas e nada mais. Lembrei do meu pai com os olhos espantados para mim. Comecei a sorrir embaixo do chuveiro. Sorri de gargalhar, até caírem as primeiras lágrimas. Chorei muito. Não esperem reações normais.

Passei a minha vida evitando brigas, aceitando, mesmo sem concordar, tentando ser motivo de orgulho e, de repente, quebrei o pau da barraca, a barraca; destruí a feira livre inteira.

Qual será a reação de tia Shelma quando souber? Agora ela terá motivo para falar mal de mim. E mamãe? Como será que ela está? Ainda posso ouvir o barulho do choro dela.

Eu preciso arrumar um emprego. Mas qual? Não tenho experiência em nada. Só sei estudar. E se eu fizer bolos para vender? Será que as pessoas compram?

– Chélia? Tudo bem aí? – Isabelle bateu na porta.

Será que fiz muito barulho?

– Sim. Já vou sair.

Desliguei o chuveiro, me enxuguei rápido, troquei de roupa e abri a porta. Isabelle me esperava no quarto com um copo de leite e um pão com manteiga.

– Ei, e essa cara de choro? Fique assim não. Tudo vai se resolver. Eu sei que vai. Amanhã pensamos num plano – ela falou e me entregou o jantar.

Por pouco não começo a chorar novamente. Fui tão egoísta, presa na minha vida, nunca imaginei que Isabelle pudesse viver numa situação tão difícil. Eu sabia que a casa deixada pela avó dela estava um pouco deteriorada, mas não fazia ideia de que fosse tanto. E agora eu ia comer a pouca comida que ela tinha. Pelo menos ainda me restavam os cinquenta reais para ajudar.

– Pare de olhar pra mim e coma. Você precisa estar saudável na hora de procurarmos um emprego.

Sorri, na tentativa de demonstrar otimismo.  Após terminarmos de comer, lavei a louça e fomos nos deitar.  A casa tinha dois quartos, mas um estava trancado.

– Achei melhor fechá-lo por tempo indeterminado – Isabelle comentou.

Não quis perguntar o motivo e nem o que tinha dentro, apenas concordei.

Dividimos a mesma cama. Como era de casal, não foi tão desconfortável. Dormimos por volta das 2h da manhã. Contei mais de dez vezes como tudo aconteceu. Em algum momento ficamos em silêncio. Chamei por Isabelle e ela não respondeu. Havia dormido. Examinei o teto do quarto por mais um tempo e adormeci também.

Sonhei que estudava Química no meu quarto e estava muito cansada por ter passado a madrugada anterior revisando a matéria. Após lutar contra o sono, resolvia cochilar por cinco minutos antes de voltar a estudar. Quando apoiava a cabeça na escrivaninha, meu pai abria a porta gritando:

“Acorde sua FRACASSADA! Nunca será aprovada desse jeito.”

Acordei assustada, procurando por ele. Demorei alguns minutos para entender que foi um sonho. Isabelle já estava de pé.

– Tenho duas notícias – ela disse assim que me viu chegar à cozinha.

– Se for notícia boa, diga logo!

– Uma é muito boa; a outra você quem vai dizer.

– Diga a boa primeiro, então.

– Seu José mandou uma mensagem. Disse que amanhã terá um evento no parque das Palmeiras, fica próximo daqui. Lá tem um salão de festas infantis na parte superior e o bufê que vai organizar é do primo dele. Aconteceu um imprevisto e a mãe do aniversariante está desesperada para contratar dois recreadores. Seu José indicou você e perguntei se eu poderia ir também, já que estou sem emprego. Ele disse que SIM. Ainda hoje teremos uma reunião com a mãe da criança.

– Não acredito, Isabelle!

Feliz era pouco para me definir. Uma possibilidade de emprego um dia após sair de casa era maravilhoso demais. O céu me enviou um anjo da guarda disfarçado de senhor ranzinza.

– E qual é a outra notícia?

– Sua mãe ligou. Queria saber se você entrou em contato comigo. Falei que não, mas ela pareceu tão desesperada! Você não acha melhor falar com ela?

Mamãe devia estar desesperada mesmo, sem nenhuma notícia minha. Deve ter ligado para todos os números da agenda do meu celular, inclusive Isabelle. Eu queria falar com ela, mas e se depois de descobrir onde eu estava ela quisesse me obrigar a voltar?

– Se eu ligar do seu celular ela saberá que estou aqui e vai querer me levar de volta para casa.

– Seus pais nem sabem onde eu moro, Chélia. E você já tem vinte e um anos. Eles não vão amarrar você e te levar à força.

Liguei.

– Oi, Isabelle! – Mamãe atendeu.

– Sou eu, mãe.

– Ah, minha filha. Graças a Deus. Onde você está? Tá tudo bem com você?

Ela começou a chorar.

– Estou bem, mãe. Não precisa se preocupar. Vou ficar na casa de Isabelle e talvez comece a trabalhar amanhã, vai ficar tudo bem.

– Trabalhar? Em quê? Volte para casa, minha filha. Seu pai está muito arrependido de ter falado aquelas coisas.

– Você acha certo nos deixar preocupados assim, Chélia? E que conversa é essa de trabalhar? – A voz do meu pai ecoou no telefone.

– Consegui uma entrevistava de emprego para ser recreadora infantil.

Não faço ideia do que imaginei ao dar aquela informação a meu pai. Ele jamais bateria palmas e gritaria viva. Até o meu lado mais sonhador deveria saber disso.

– Minha filha, para de querer chamar atenção! Volte para casa ainda hoje! Você quer que sua mãe fique doente de tanta preocupação?

– Liguei para dizer que estou bem. Tchau, pai.

Desliguei o telefone. Pensar na minha mãe doente formou um nó de espinhos na minha garganta. Mas, dessa vez, eu não iria ceder.

– Pronto, já avisei que estou viva. Obrigada – devolvi o celular a Isabelle.

Engoli a vontade de chorar e fui procurar uma roupa para usar quando fosse conhecer nossa futura contratante. Passamos a manhã decidindo qual composição demonstraria mais confiança. Escolhi uma blusa branca, com um lacinho cinza na gola, e uma calça preta. Isabelle optou por um vestido azul, sem manga, que ia até o joelho.

Depois do almoço fomos para o ponto de ônibus. Após alguns minutos de espera, entramos em um. Se o que peguei quando saí de casa estava vazio, não posso dizer o mesmo desse. Parecia humanamente impossível caber mais duas pessoas ali. Isabelle agiu como se fosse normal. Os outros passageiros me empurravam de um lado para o outro. O lacinho da minha blusa quase foi arrancado por um homem fortão que passou no corredor. A cada freio eu tombava para um lado. Não foi uma situação que eu possa chamar de confortável.

– Chélia, vamos descer na próxima parada. Vá andando em direção à porta de saída.

A instrução, em condições normais, era fácil. Andar até a porta de trás. O problema estava em fazer aquilo tendo que ultrapassar uma multidão, quando a minha localização ficava mais perto da entrada do que da saída.

– Licença, licença, licença!

Tentei adentrar no emaranhado de pessoas. Sem sucesso. Toquei nas costas de uma mulher na minha frente.

– Licença, por favor, eu preciso passar.

– E você quer que eu faça o quê, minha filha? Você não está vendo que não tem espaço?

– Desculpe.

Esperava um pouco mais de compreensão. Se fosse o contrário, eu teria, pelo menos, ficado de ponta de pé para ocupar menos espaço e ajudar a descida dela. Escolhi a pessoa errada para falar.

– Vamos, Chélia.

Isabelle segurou no meu braço e saiu me arrastando entre as pessoas. Bati em braços, pernas, costas. Tentei pedir desculpas, mas ninguém respondia. Algumas me olhavam com expressão de raiva, achei melhor não dizer mais nada. Contrariando as leis da Física, conseguimos descer do ônibus.

– É aquele prédio ali. Condomínio Lisbano – Isabelle apontou para a portaria do prédio, composto de três torres de cores azul, branca e marrom.

O apartamento que procurávamos ficava na torre um, no décimo sexto andar.

– Apartamento 1602, por favor – ela pediu para o porteiro interfonar.

– Qual o nome de vocês?

Respondemos e a nossa entrada foi liberada em alguns instantes. Mônica, a possível contratante, nos aguardava com a porta aberta. Cerca de dez pessoas entravam e saíam do apartamento com lembrancinhas, lancheiras, enfeites de mesa.

– Oi, meninas. Isabelle e…?

– Chélia – respondi.

– Certo, Chélia. Podem entrar.

Fomos para o quarto dela.

– É o único lugar da casa que não está abarrotado de coisas – ela disse. – Bem, a festa será para cem convidados, entre eles, umas trinta crianças. Contratei dois palhaços pela Internet, mas eles sumiram depois que depositei a metade do valor. Não quero nem pensar nisso agora para não ter raiva. Vocês têm alguma experiência com esse tipo de atividade?

– Bem, a festa será para cem convidados, entre eles, umas trinta crianças. Contratei dois palhaços pela Internet, mas eles sumiram depois que depositei a metade do valor. Não quero nem pensar nisso agora para não ter raiva. Vocês têm alguma experiência com esse tipo de atividade?

Continua…

Fim da amostra


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12 comentários em “Amostra: Desculpe, esqueci o paraquedas”

  1. Williane Moura

    Prima! Está incrível! Já estava tão imersa que achei que estava no livro, até ler ” fim da amostra”! Estou ansiosa para ver esse livro disponível o quanto antes! A leitura está super divertida e agradável! Parabéns!!❤️

  2. Jefferson Peixoto

    Parabéns! Feliz pela continuidade do seu brilhante trabalho. Com muita sutileza, seus personagens vivenciam muitos dos embates sociais e familiares contemporâneos com uma narrativa agradável e envolvente. Acrescentaria que, como professor, a abordagem de temas relacionados ao patriarcado, confiabilidade e violência urbana sob a ótica de uma jovem é muito didático pois precisamos entender melhor a visão de mundo dos jovens nessa sociedade tão conturbada. Por fim, ressalto a importância do bem mais precioso que podemos ter: a amizade. Parabéns e obrigado por nos presentear com mais uma obra que, espero, seja seguida de muitas outras.
    Jefferson Peixoto (Macau).

    1. Coisa boa ler seu comentário. Chélia encontrará professores bons e atenciosos como você e outros não tão amáveis. 😅
      Obrigada pelo apoio e carinho. Espero sempre encontrá-lo por aqui.

  3. Adorei!!!!
    Sorri demais com Pingo perseguindo eles.
    Curiosa para saber mais sobre Bernardo 😍

    1. Maria Antonia

      Amei , sorrir bastante. Vc tá de Parabéns! Publica logo, estou ansiosa para continuar.

      1. Kkkkk…
        Gostei muito do Bernardo…
        Não vejo a hora da publicação.
        Parabéns Kalliny

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