Amostra: Miga, querem roubar meu crush

capa do livro miga querem roubar meu crush

Capítulo 1

Cartas de amor

À primeira vez que me senti apaixonada por alguém, eu tinha 12 anos. Às 11h40 da manhã, na saída da escola, meu amigo Paulinho me esperava no canteiro, do outro lado da rua.

– Oi. O que está fazendo aqui? – falei, me aproximando.

– Quero te entregar isso que uma pessoa mandou.

Paulinho esticou a mão e peguei algo que parecia ser uma carta. Ele subiu na sua bicicleta e foi embora. Olhei, por alguns segundos, aquele envelope branco e depois virei. Na parte de trás estava escrito: Do seu Admirador Secreto. Uma descarga de adrenalina diante daquelas palavras me fez sentir o famoso frio na barriga.

Abro ou não? Será que é melhor deixar para ler em casa? Talvez seja mais seguro. Leia logo isso, Eduarda! Minha mente trabalhava a todo vapor e eu abri.

A carta me enchia de elogios: “a princesa linda que roubou meu coração”; “a mais linda da cidade”; “meu coração dispara só em te ver”. E, no final, ele concluía, “sei que você é muito nova, mas posso esperar até completar 15 anos para começarmos a namorar”.

O amor era algo totalmente desconhecido para mim, mas, quando li Admirador Secreto, me apaixonei imediatamente pela pessoa daquela carta.

Meu primeiro impulso foi guardar o envelope dentro da ­mochila. Parecia que eu estava com a prova de um crime nas mãos e a solução mais eficaz que encontrei foi escondê-la antes que alguém visse.

Fui andando até a minha casa e tentei agir naturalmente, mesmo parando três vezes para olhar se a carta continuava lá dentro.

Quando cheguei, meu irmão ouvia música na sala e corri direto para o meu quarto. Demorei muito tempo pensando no que iria fazer com a carta e, de repente, ouvi o barulho do portão se abrindo. Minha mãe!

Corri para o banheiro com mochila e tudo. Tomei o banho mais rápido da minha vida. Mas, como tudo que você tenta esconder parece ganhar tom verde-limão numa paisagem rosa-choque, ela resolveu me esperar no meu quarto.

Dei um grito quando a vi deitada na cama.

– O que é isso, menina? – minha mãe falou assustada.

Tentei inventar alguma coisa.

– Sei lá, mãe. A Senhora deitada aí, parecia morta.

Nunca fui muito boa para mentira de improviso.

– Nossa, Eduarda! Que pensamento é esse, minha filha?

Soltei a mochila de leve no chão, mas ela percebeu.

– Levou a bolsa da escola para o banheiro por quê? Tem alguma coisa aí que ninguém pode ver?

Mães e seus poderes sobrenaturais de perceberem as mentiras dos filhos.

– Não… levei… quer dizer… levei e não.

– Como é, Eduarda?

– Eu levei. E não estou escondendo nada. Foi sem querer, quando percebi já estava no banheiro com ela.

Quem acreditaria naquela história? Não sei. Minha mãe não acreditou. Ela apertou os olhos e me observou como se tentasse descobrir a mentira. Comecei a falar sobre a aula para desviar o assunto e funcionou. Ela desistiu de me colocar contra a parede e agradeci. Meu coração apaixonado não aguentava mais tantas emoções em um só dia.

À tarde, eu precisava estudar matemática para uma prova que teria no outro dia, mas, com dois minutos de estudo, meu pensamento desviou para meu admirador e não encontrei o x, y ou z de jeito nenhum.

Minha mãe voltou do trabalho à noite, e me chamou para ir ao mercado com ela. Impulsionada pela possibilidade de encontrar meu Admirador Secreto, mesmo sem conhecê-lo, desisti de estudar e fui.

Encontrei Paulinho na sessão de biscoitos. Ele ficou nervoso quando me viu. Será que Paulinho sabia do conteúdo da carta?

– Quem mandou aquilo, Paulinho?

– Eu não posso dizer.

– Mas você é meu amigo. Eu quero saber quem mandou. Diga logo!

– Eu prometi e não posso contar, Duda.

Saí com raiva de Paulinho.

Minha mãe já estava no caixa. Entreguei meus biscoitos e fiquei esperando ela pagar. Fomos andando para casa. Tentei agir normalmente e conversar com ela sobre coisas aleatórias, mas não consegui. Minha cabeça estava concentrada em descobrir a identidade do meu amado. Observei todos os meninos que encontrei pela frente. O último foi o rapaz da bicicleta. Ele vinha distraído e grudei meus olhos nele para tentar descobrir se ele era o meu admirador. No começo, ele sorriu; depois, fez cara de assustado e começou a pedalar mais rápido. Acho que exagerei.

Depois do jantar, coloquei a carta dentro de um porta-joias antigo e escondi no meu guarda-roupa embaixo de uns lençóis. Não consegui mais estudar e a prova foi um pesadelo.

Um mês, após o recebimento da carta, o segredo permanecia. Numa manhã, acordei mais cedo e li a carta três vezes. Escondi novamente, me arrumei e fui para aula. No caminho da escola, um pensamento fez minhas mãos gelarem.

E se minha mãe descobrisse?

Era segunda-feira, o dia de folga dela. Certamente ela iria arrumar a casa e mexer no meu guarda-roupa. Me acalmei e resolvi contar com a sorte. Se ela não tinha descoberto até agora, não ia ser naquele dia.

Não vai acontecer nada, Eduarda. Pensamento positivo.

Assim que cheguei em casa, os olhos da minha mãe revelavam que a sorte ignorou completamente a minha existência insignificante.

– Eduarda, venha até meu quarto. Agora!

Gelei, senti calor, a pressão baixou, o coração disparou e as pernas começaram a ter convulsões.

Caminhei lentamente e, quando abri a porta do quarto, ela estava sentada na cama segurando um pedaço de papel na mão. Minha Nossa Senhora, a carta!

– Posso saber o que significa isso? Quem mandou?

– Eu não sei, mãe.

– NÃO minta pra mim, Eduarda!

Ela foi levantando a voz e comecei a chorar.

– Eu não sei, mãe. Paulinho me entregou na saída do colégio e disse que não podia falar de quem era.

– Você acha certo ficar me escondendo as coisas? Meu Deus! Você só tem 12 anos. Quem é o depravado que quer namorar a minha filha de apenas 12 anos? E o covarde ainda se esconde atrás de cartas anônimas.

Depois de muita revolta, ela se acalmou e passei a ser vigiada 24 horas por dia. Nem na casa de Lívia, que ficava do outro lado da rua, eu podia ir. Me transformei numa condenada em regime semiaberto por ter cometido o grande crime de receber, aos 12 anos de idade, uma carta de amor sem remetente.

Paulinho sumiu completamente. Ele devia estar se escondendo com medo que eu o pressionasse para descobrir quem era o anônimo apaixonado.

Num sábado à tarde, depois que Lívia insistiu bastante, minha mãe deixou que fôssemos sozinhas à sorveteria. Compramos o sorvete e sentamos no banco de uma pracinha que ficava bem em frente. Nesse pequeno espaço de tempo, Paulinho apareceu. Trouxe uma nova carta e, novamente, saiu sem dizer nada.

A nova carta era semelhante à primeira. Ressaltava minha beleza e declarava o amor imensurável do anônimo. Até então, ninguém, além da minha mãe, Paulinho e eu, sabia da existência desse admirador.

Lívia, uma pessoa que não conseguia guardar nem os segredos18 dela, tomou a carta da minha mão, leu fazendo caras e bocas e, na segunda-feira, quando cheguei à escola, todo mundo sabia. Todo mundo mesmo.

Lívia saiu falando para o pessoal do colégio e pedindo segredo absoluto. Em apenas um dia, a pequena cidade de oito mil habitantes já conhecia o meu “segredo absoluto”.

O caos se instalou na minha vida. A cidade inteira me vigiava. As pessoas tomaram as dores dos meus pais e passaram a ter como objetivo de vida a descoberta do anônimo das cartas.

Paulinho se tornou a pessoa mais famosa da cidade. Todos queriam ser íntimos dele e arrancar o segredo mais cobiçado dos últimos tempos. Ele se manteve firme por quase dois meses até que não resistiu mais a pressão. Não sei a quem ele contou primeiro, mas quem me falou foi Lívia “boca furada”.

Era sexta, à tarde. Meus pais tinham viajado e meu irmão saído para jogar futebol. Eu estava no meu quarto vendo TV, quando escutei os gritos de Lívia me chamando no portão. Fui abrir e ela já entrou falando.

– Duda, eu já sei quem é o Senhor Secreto.

Levei um susto. Será que finalmente ia descobrir quem era o amor da minha vida? Sonhei com isso várias noites.

– QUEM É?

– Você não vai acreditar!

Ela começou a sorrir como uma louca.

– Fala logo, Lívia!

– É Júnior.

– Júnior? Que Júnior?

Na hora eu não conseguia ligar o nome à pessoa.

– Júnior, menina! O que toca na banda da cidade.

– Ah… Júnior. Sei quem é.

Júnior tinha 17 anos, tocava na orquestra da cidade e não se parecia com o príncipe que imaginei. Ele era um pouco desproporcional. Alto demais, magro demais e andava meio curvado. Resumindo, o papel de galã jamais seria dele.

Desanimei um pouco com a descoberta, mas, em algumas horas, me acostumei com a ideia. Afinal, beleza não era tudo.

Minha mãe ficou mais calma. Provavelmente, na cabeça dela, a pessoa teria, no mínimo, 60 anos. Apesar disso, a vigilância não diminuiu. E tudo isso por nada, porque Júnior continuou sem trocar uma palavra comigo.

Todo sábado, à tarde, a banda de música ensaiava em um prédio, em frente à pracinha. Meus pais estavam na fazenda do meu avô, e meu irmão, o encarregado de me vigiar naquele dia, saiu com uma “amiga”. Os pais de Lívia também foram com meus pais, e ela apareceu lá em casa me chamando para ir ver o ensaio da banda. O desejo de falar com Júnior superou o medo e decidi ir. Saí toda arrumada, quase madrinha de casamento.

Sorri ao ver Júnior. Ele me olhou e permaneceu sério. Talvez a minha roupa estivesse arrumada demais e ele estranhou. Não quis pressioná-lo e fiquei um pouco afastada esperando que ele viesse falar comigo. Voltei para casa, arrasada. No tempo em que fiquei lá, além de não falar comigo, Júnior me ignorou completamente.

Na segunda-feira, ia iniciar a semana do estudante e, todo ano, a minha escola promovia uma gincana para comemorar.  A orquestra Municipal era responsável por tocar as músicas nas competições de dança. Na tentativa de impressionar Júnior, convenci Paulinho e Lívia a se inscreverem na dança comigo. Teríamos que apresentar uma coreografia com tema livre e duração mínima de cinco minutos. Lívia teve a grande ideia de dançarmos frevo. Um dança típica do estado de Pernambuco e muito bonita – para quem sabe dançar.

Em três dias, só conseguimos aprender um passo e muito mal. Iríamos repetir a mesma coisa até o final da apresentação: abaixar, levantar um pé, depois o outro, subir e balançar para os lados um bastão cheio de fitas feito por minha mãe.

Paulinho escolheu o pior momento para me contar uma coisa horrível. Chegamos à escola onde seriam realizadas as apresentações com 1 hora de antecedência. Faltando trinta minutos para subirmos no palco, eu e Lívia nos olhávamos no espelho para ajustar os últimos detalhes da roupa.

– Eduarda, preciso falar com você agora!

Paulinho falou abrindo a porta da sala onde nos arrumávamos.

– O que foi? Cadê a água que você foi pegar?

Ele me olhava com os olhos esbugalhados.

– Esqueci. Duda, desculpa por te entregar aquelas cartas.

Não entendi nada. Que conversa era aquela?

– Vamos nos concentrar na apresentação, Paulinho. Mesmo que Júnior ainda não tenha falado comigo, eu descobri o amor e é a coisa mais linda.

– Duda. Ele não falou e nem vai falar. Acabei de saber que Júnior negou tudo. Disse que foi apenas uma brincadeira. Mas, quando ele falou comigo, foi sério, eu juro. Ele não deve ter aguentado a pressão.

O amor, um ser tão novo na minha vida, já me apunhalava pelas costas. As lágrimas quiseram descer e me segurei. Ia subir naquele palco e mostrar a Júnior o quanto ele era idiota. Destruída por dentro, mas inabalável por fora.

Agora teremos Eduarda, Paulinho e Lívia apresentando o frevo. A diretora do colégio anunciou no microfone. Escutamos um barulho alto de palmas e saímos em direção ao palco. A banda estava lá, inclusive Júnior. Como o espaço era pequeno, ficava todo mundo próximo. Eu fiquei de um lado, Lívia do outro e Paulinho no meio. A raiva de Júnior me fez esquecer que primeiro era para abaixar. Fiquei em pé e quando percebi, tentei reparar meu erro, só que ao descer Paulinho já ia subindo. Bati com o bastão na cabeça dele. Ouvi os gritos de OH! da plateia. Paulinho parou de dançar e levou as mãos à cabeça. Apesar da dor, não foi nada grave e em segundos voltamos a dançar.

Antes de iniciarmos nossa apresentação, combinamos com as professoras que o nosso tempo seria o mínimo – cinco minutos. A dança exigia muito preparo físico, coisa que nós não tínhamos.

Alguns minutos de dança e já estávamos exaustos. Fiz um gesto para a banda parar de tocar. Ninguém aguentava mais, independente do tempo. Eles continuaram tocando. Tentei me concentrar e esperar mais um pouco. Pelo nosso estado, deveria estar bem perto de acabarem os cinco minutos.

Quase um ano depois, eles continuavam tocando. Estávamos iguais àqueles bonecos doidos de posto de gasolina. Se ­balançado de um lado para o outro, sem o menor ritmo. Novamente fiz sinal com a mão pedindo para terminar e, quando a música chegou ao fim, eles começaram outra vez.

Eles eram loucos ou o quê? Peguei o bastão e joguei no chão com toda a força que me restava.

– EU JÁ FALEI QUE É PRA PARAR. É PRA PARAR. É PRA PARARRR!!!!!!!!

Eu dizia e batia o bastão no chão. Totalmente descontrolada. A banda e todas as pessoas que estavam na escola, inclusive Paulinho e Lívia, me olhavam espantadas. Desci do palco com as pernas tremendo de tanto cansaço e fui tomar água.

– O que foi isso, minha filha?

Minha mãe se aproximou e falou assustada.

– A orquestra não parava, mãe. Não aguentava mais.

Ela balançou a cabeça em sinal negativo.

Devido ao meu mau comportamento, recebemos nota zero. Nenhum daqueles professores tinha ideia do que era ter seu coração partido e ainda ser submetida a um esforço físico além da sua capacidade. Insensíveis.

Joguei fora todas as cartas de Júnior assim que cheguei em casa e desabei. Como ele teve coragem de dizer que era brincadeira?  Fique bem triste por um tempo, até que um dia acordei decidida a não chorar mais por um fraco, medroso e feio.

Corri para a casa de Paulinho. Queria contar que tinha me curado, mas o encontrei aos prantos.

– O que foi, Paulinho?

– Meu pai me bateu. Olha isso, Duda.

Ele levantou a camisa e vi uma marca vermelha, quase sangrando, nas suas costas.

– Meu Deus! Por que ele fez isso?

– Ele me viu lendo uma das suas revistas e acha que eu sou gay.

Eu sempre pedia a minha mãe para comprar revistinhas sobre horóscopo, dicas de moda e receitas. Paulinho adorava minhas revistas e jamais imaginei que fosse causar tantos problemas.

– É melhor você ir, Duda. Ele me proibiu de te ver. Disse que eu preciso fazer amigos homens.

Fui embora, mas prometi a Paulinho que encontraria uma solução e tudo voltaria ao normal. Ele concordou balançando a cabeça e caiu no choro novamente.


Capítulo 2

Olhar

Eu não suportava ver meus amigos mal. Quando cheguei em casa, depois que conversei com Paulinho, fiquei pensando como eu poderia ajudá-lo. Pensei, pensei e, finalmente, uma ideia surgiu.

Faltava apenas uma semana para terminar as aulas, então, combinei com o pessoal da minha turma de jogar vôlei e futebol no quintal da minha casa, todos os dias, durante as férias. Paulinho gostou da ideia e o problema foi resolvido, pelo menos por um bom tempo.

Abandonamos as revistas. Agora nos divertíamos com outras pessoas, inclusive com meninos, como o pai de Paulinho queria. Numa tarde, o pai dele apareceu de surpresa na minha casa e saiu satisfeito quando viu Paulinho praticando brincadeiras que ele julgava de meninos.

Já perto do Natal, resolvi passar uma semana na fazenda do meu avô, pai da minha mãe. Lá era um lugar sem comparação com qualquer outro. Não tinha luz elétrica, acordávamos bem cedo para tomar leite quentinho e à noite, o céu se transformava num espetáculo de estrelas brilhantes que iluminavam aquela escuridão. Além disso, eu estava curiosa para conhecer a novidade: a namorada do meu avô Francisco.

Depois que minha avó morreu, seu Francisco teve alguns envolvimentos com jovens senhoras, a maioria viúvas, mas nada oficial. Essa foi a primeira que ele assumiu como namorada. Chamava-se Betânia e tinha quinze anos a menos que ele. Era engraçada e um pouco louca. Fazia umas danças esquisitas, conversava com a televisão, cantava músicas da Xuxa; e a comida dela, para ser considerada horrível, ainda precisava melhorar.

Betânia me adorou. Ela quis me ensinar algumas de suas receitas desastrosas e apenas fingi prestar atenção. Não queria aprender a fazer algo parecido com mingau de neném estragado.

Depois das receitas, ela foi me mostrar as fotos dos seus familiares e disse que uma era especial. A de um sobrinho que, além de lindo, combinava comigo. Quando vi a foto, tive certeza de uma coisa: Betânia me achou horrível. Que menino feio! Usava uma bermuda florida com uma camiseta de bichinhos e um boné azul claro. Ele era bem alto e desproporcional como Júnior, a diferença estava apenas no peso, Júnior devia ter uns 20 kg a menos. A única coisa que se salvavam eram os olhos. Betânia percebeu a minha decepção e comentou que, na foto, ele tinha 10 anos, mas que agora estava um lindo rapaz de 15 anos. Não consegui acreditar muito e preferi não comentar nada.

No final da tarde, estávamos – eu, Betânia e meu avô – deitados na varanda quando ela falou que precisava ir visitar a filha e perguntou se podia me levar. Os familiares de Betânia moravam na capital de outro estado. Meu avô disse que só meus pais poderiam resolver. Eu me empolguei com a ideia imediatamente, mas tive que esperar até o outro dia, porque na fazenda não tinha telefone.

Bem cedo, chegamos a minha casa. Betânia explicou que passaríamos o Natal e Ano Novo na casa da sua irmã e perguntou se minha mãe deixava. Ela não deu nenhuma resposta concreta, falou apenas que ia pensar e conversar com meu pai. Desanimei um pouco, mas também não esperava que fosse conseguir tão fácil. Fizemos algumas compras e voltamos para a fazenda. À noite, minha mãe apareceu por lá. Foi explicar a Betânia que meu pai não concordou com a viagem, pois eu era muito nova e nunca tinha viajado sem eles.

– Owww, mãe. Não tem nada demais. Eu vou com Betânia.

– Eduarda, minha filha. Seu pai não aceitou.

Ela percebeu que eu ia começar a chorar e tentou amenizar.

– Mas eu vou falar como ele novamente.

Agarrei-me àquela pequena esperança.

Voltei para casa no sábado, pela manhã, e Betânia viajaria na segunda. Mal cheguei e já recebi a notícia. Eu não iria. Comecei a chorar e corri para o meu quarto. Passei o resto do dia lá dentro. Minha mãe abriu a porta algumas vezes para tentar se explicar, mas minha resposta era sempre a mesma:

– Eu nunca posso fazer nada. O que custa eu ir, mãe? Sempre tenho que ficar nessa casa como se fosse uma prisioneira. Passei por média, com todas as notas acima de oito e mesmo assim não posso ir a uma simples viagem.

– Não se trata disso, minha filha. Nós nem conhecemos essa mulher direito. E se ela for uma irresponsável? Não é como se você fosse pra fazenda, Eduarda, é uma cidade grande.

– Mãe, isso não é desculpa. A Senhora conhece muito bem a família dela.

Betânia ainda era prima de vigésimo grau do meu avô e na infância ele morou por alguns anos na casa da mãe dela.

– Seu pai não confia que você vá sozinha, Eduarda.

– É porque eu sou uma prisioneira nessa casa. Passei por média, não tirei nenhuma nota abaixo de oito…

Não consegui terminar meu mantra, porque as palavras foram engolidas pelo choro.

– Meu DEUS! Essa mulher não tinha outra pessoa para chamar? Agora é você e seu pai enchendo a minha paciência. Só pode ser um castigo.

Minha mãe saiu batendo a porta do quarto e fiquei lá, me acabando em lágrimas. Não conseguia aceitar aquela injustiça. Eu chorava e parava um pouquinho, até lembrar que estava cada vez mais perto da segunda-feira e começava novamente. Foi assim o dia inteiro até eu conseguir dormir.

No domingo de manhã, acordei com minha mãe fazendo carinho no meu cabelo. Abri os olhos e ela sorria pra mim. Já me preparei para iniciar o meu mantra de ser prisioneira e ter passado por média, mas, antes que eu começasse a falar, ela disse que conversou com meu pai e que ele concordou com a viagem, desde que ela fosse junto.

Ela nos deixaria e voltaria no dia seguinte. Fiquei tão feliz que nos dez segundos iniciais, após a notícia, eu paralisei. Depois que a ficha caiu, pulei igual uma maluca dentro do quarto.

Viajamos no outro dia, pela manhã. Demorou cerca de sete horas até finalmente chegarmos ao apartamento onde a filha e a mãe de Betânia nos aguardavam. Elas eram bem simpáticas e o lugar super aconchegante. Descansamos um pouco e saímos para jantar no shopping. Pela manhã, depois que minha mãe voltou, eu e Betânia passamos o dia em casa, assistindo a filmes e comendo pipoca com brigadeiro. Tirando o barulho dos carros que passavam na rua, parecia que eu estava em casa.

Dormimos cedo porque, no outro dia, era véspera de Natal e iríamos para casa da irmã de Betânia, a Beatriz. O café já estava na mesa quando acordei e, apesar de parecer algo legal, o gosto era horrível. Betânia conseguia estragar até pão com manteiga. Esperava, sinceramente, de todo coração, que a comida na casa da irmã dela fosse melhor, não aguentava mais engolir sem mastigar, só por uma questão de sobrevivência.

Por volta das 14h, saímos em direção à casa de Beatriz. Eu imaginava que passear de carro na cidade grande fosse algo extraordinário, mas não foi. O carro quase não conseguia se mover por causa do trânsito, muito barulho de buzinas, fumaça e pessoas irritadas. Só chegamos depois de uma hora.

Beatriz, uma senhora simpática de cabelos ruivos, foi nos receber no portão. Primeiro, passamos pelo jardim. Lindo, com muitas flores, árvores e pequenos bancos com luminárias do lado. Depois, ela nos levou até a cozinha para mostrar os preparativos do jantar do Natal. Julgando pela aparência da comida, o sabor não poderia ser tão ruim quanto o de Betânia. Em ­seguida, fomos a um dos quartos da casa para conhecer seus dois filhos, o menino feio da foto e outro.

Beatriz bateu na porta e os meninos gritaram que podíamos entrar. A porta abriu e eu paralisei. Não entrei, não corri, simplesmente fiquei parada como se tivesse sido atingida por um raio paralisante.

– Oi. Pode entrar.

Obriguei minhas pernas a andarem e sorri quase sem força. Não sabia o que era aquilo, mas minha boca tava tão seca que nem a melhor mangueirinha sugadora dos consultórios odontológicos conseguiria aquela façanha. Ele se aproximou e estendeu a mão.

– Tudo bem? Meu nome é Rafael.

Continuei sem me mexer. Eu não queria tocar na mão dele e a razão era muito simples, a minha estava GELADA. Picolé. Mas, diante dos olhares esperando uma reação minha, tive que cumprimentá-lo para não passar por mal-educada.

– Tudo. O meu é Eduarda.

Falei baixo e tremido. Não sabia onde tinha ido parar a minha certeza de manter o amor distante depois das cartas mentirosas de Júnior. De repente, sem nenhuma explicação, tudo pareceu encantador outra vez.

Eu sempre escutava minhas tias dizendo que toda criança feia, quando cresce, fica bonita. Eu achava aquilo a maior ­besteira. Mas, depois que conheci Rafael, comecei a acreditar ­plenamente. Ele ficou lindo. E quando eu falo lindo, quero dizer muito lindo mesmo. E o olhar? Era como navegar num mar cristalino.

Falei com o irmão mais velho dele – Fábio – que também estava no quarto e saímos. Ainda não tinha me recuperado do choque, mas continuei seguindo Betânia e Beatriz que me apresentavam o restante da casa. Na parte de trás, ficava uma piscina, consideravelmente grande. Beatriz perguntou se eu queria mergulhar e não pensei duas vezes. Eu amava piscina.

Betânia me levou para o quarto em que iríamos ficar, troquei de roupa, ela me deixou na área da piscina e foi ajudar sua irmã nos preparativos do Natal.

Rafael e o irmão já estavam lá. Eu deveria ter ficado feliz, mas cadê a coragem de ficar só de biquíni na frente deles? Desisti de tomar banho e me sentei em uma cadeira que ficava ao lado da churrasqueira, um pouco mais afastada.

– Não vem?

O irmão dele gritou e Rafael ficou me olhando.

 – Agora não, depois eu vou.

Se você for como eu, não precisa de ninguém pra te fazer de trouxa, porque essa pessoa já mora dentro de você. Acho que fiquei sentada na minha cadeirinha por quase uma hora, até que chegaram duas primas dos meninos, só de biquíni e se achando AS SUPERIORES. Elas me olharam com desprezo e só disseram “oi”. Pularam na piscina e uma delas agarrou Rafael pelas costas. Como diz minha mãe, tudo na vida tem um limite, e aquele era o meu. A cena me irritou a ponto de perder a vergonha. Levantei, tirei a blusa, depois o short, coloquei a roupa na cadeira e fui até a piscina. Rafael me olhou de corpo inteiro, sem disfarçar.

Assim que entrei, ele veio nadando por baixo da água e subiu bem próximo a mim.

– Finalmente entrou, Eduarda. Tava pensando o que fiz de errado pra você não querer chegar nem perto.

– Não fez nada.

Sorri sem graça. Eu realmente não sabia lidar com aquela situação. Quando ele se aproximava eu perdia a capacidade de raciocinar.

Rafael ainda estava tentando estabelecer uma conversa comigo quando uma das primas dele gritou:

– Rafaeeeel, vamos brincar de derrubar? Eu subo nas suas costas e a Manu sobe nas costas do Fábio e ganha quem permanecer mais tempo sem cair.

– Eu vou se a Eduarda for comigo. Aí, quem perder sai e você entra.

Ela ficou com cara de pastel e eu gargalhando por dentro. Fiquei com vontade de gritar: TOMA, TOMA, TOMA. Eu sei que é meio infantil, mas tive vontade de gritar mesmo assim. Queria me excluir e se ferrou.

Rafael mergulhou para que eu subisse nas suas costas. Não perdemos uma. Por mais que as meninas tentassem me derrubar, ele não me deixava cair. As priminhas queridas ficaram extremamente irritadas, desistiram da brincadeira e saíram da piscina. Pouco tempo depois Fábio também saiu e restamos apenas nós dois.

– Acho que vou sair também – eu falei.

Meu poder autodestrutivo dando o ar da graça. Na verdade eu não queria sair, mas na falta de saber o que falar, era melhor dizer besteira, claro!

– Fique mais um pouco, Eduarda. Já sei! Vamos ver quem aguenta ficar mais tempo embaixo d’água?

– Estou ficando com frio. Acho que é melhor eu sair mesmo.

Quem me concedeu o livre arbítrio? Não quero mais. Obrigada!

– Eu posso te abraçar para diminuir o frio.

Ainda bem que ele estava sendo persistente. Caso contrário eu já teria estragado tudo há muito tempo.

Aceitei a brincadeira de ver quem passava mais tempo embaixo d’água e ignorei a parte do abraço. Apesar de não achar uma ideia ruim, eu precisava manter o resto da minha estabilidade emocional. Ele se aproximou, segurou na minha mão e mergulhamos. Ficamos nessa brincadeira até Betânia aparecer.

– Hummmm, tá rolando um clima!

Rafael me olhou envergonhado e eu cobri 80% do rosto com o cabelo.

– Que conversa, tia. Eu e a Eduarda? Nada a ver – ele falou.

Ai! Essa doeu.

– Sei. Você nunca fica até anoitecer na piscina, meu sobrinho querido. Não venha querer enganar a tia.

– A Senhora sabe ser insuportável quando quer.

Rafael saiu da piscina, pegou a toalha e me deixou sozinha. Pronto, a “espertona” aqui, mais uma vez, tinha caído na conversa de outro Júnior da vida.

Betânia continuou o interrogatório comigo.

– E aí? Tá rolando um clima ou não?

– Não.

– Você alguma vez já ficou com alguém, Eduarda?

Rafael tinha razão. Betânia sabia ser bastante insuportável. Qual a necessidade de ela me perguntar isso?

– Não – respondi sem vontade.

– Aíííííí. Quem sabe o Rafa não é o primeiro.

– Vamos entrar, Betânia, daqui a pouco chega a hora do jantar e ainda estamos aqui.

– O Rafa é lindo e tá caidinho por você. Beija ele boba!

Se Rafael estivesse com a metade da empolgação de Betânia, nós já estaríamos casados. Mas ele deixou bem claro o nosso status de relacionamento: NADA A VER!

Terminamos de nos arrumar às 21h. Usei um vestido vermelho que compramos no shopping, dei uma leve secada no cabelo e fiz uma maquiagem simples. Betânia disse que eu estava linda e a minha imagem no espelho me fez acreditar que era verdade. Respirei fundo e me preparei pra encontrar Rafael novamente. Precisava manter o controle e demonstrar indiferença.

Gostaria muito de ser uma pessoa mais sensata e ouvir minha razão, mas só bastou encontrar seu olhar para meu coração se derreter igual a manteiga no calor. Ele estava perfeito com uma calça jeans e uma camisa de botão preta que ressaltava a parte mais linda do seu corpo, os olhos verde-mar.

Beatriz chamou Betânia para conversar alguma coisa em particular e eu fiquei sozinha na sala sem saber o que fazer. Rafael se aproximou e perguntou se eu queria sentar onde ele estava.

– Nada a ver. Vou ficar aqui – eu falei.

– Nada ver o quê?

Rafael franziu a testa e ficou esperando a minha resposta.

– Eu ir me sentar onde você está.

– Por quê?

– Porque eu não quero. Prefiro ficar aqui.

Se há pouco tempo ele achava que não tínhamos nada a ver, então que me deixasse quieta no meu canto.

– Então fique, Eduarda!

Ele saiu com raiva e eu me encostei no sofá. Betânia ainda não tinha voltado e Rafael foi para o outro lado da sala onde estavam suas primas. Bateu uma saudade de casa. Os Natais eram sempre muito animados, com muitas comidas gostosas e, além disso, eu conhecia todo mundo. Mas agora não ia reclamar, chorei tanto pra conseguir a viagem, não ia ficar me lamentando.

– Oi. Como se chama? Não parece muito animada.

Ele sorriu se divertindo da minha desgraça.

– Estou normal. Não sabia que precisava ficar dando cambalhotas pela casa para demonstrar animação.

– Além de animada é simpática. Posso saber seu nome?

– Eduarda.

– Muito prazer Eduarda! Sou o Gustavo. Eu também não sou fã dessas reuniões familiares, sempre fico morrendo de sono, mas minha mãe só me deixa ir dormir depois do jantar.

 Gustavo nem imaginava que o meu problema não era a reunião familiar.

– E você mora aqui?

– Não. Sou primo do Rafa. Mas no Natal dormimos aqui, porque sempre acaba muito tarde e no outro dia tem o tradicional churrasco.

Percebi Rafael me olhando feio do outro lado da sala. Não demorou muito e ele veio onde estávamos.

– Gustavo, Fábio está chamando você.

– Pra quê?

– Sei não. Ele só pediu pra te chamar.

Gustavo se levantou e eu pedi que ele voltasse depois para continuarmos a nossa conversa. Falei pra provocar Rafael e funcionou. Ele quase me engoliu com aqueles olhos verdes.

– Quer ficar com meu primo, é?

– Qual o seu interesse nisso? – perguntei irônica.

– Por que você está sendo grossa comi1go, Eduarda?

– Eu? Eu não!

Betânia apareceu e interrompeu nossa conversa.

– Nem ficaram e já estão brigando?

Continua…

Fim da Amostra


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