Uma amiga indesejada

mulher escondendo o rosto

Vou chamá-la de Mê. Quero deixá-la mais íntima, embora ninguém goste, exceto em situações excepcionais, quando seu desaparecimento implica circunstâncias muitas vezes não desejadas. Descobri isso com o tempo.

As primeiras vezes, geralmente, são complicadas. Para mim não foi diferente. Era sábado, à tarde, eu estava no quarto com a minha mãe e Lita, minha amiga, vendo um programa de TV. Senti umas dores na barriga, pensei que fosse algum efeito da feijoada do almoço.

O programa acabou. Fui ao banheiro. Abri a porta, levantei a tampa do vaso, desci o zíper do meu short e quase tenho um ataque cardíaco. SANGUE. Sangue na minha calcinha. Eu não conseguia acreditar naquela tragédia, mas realmente era sangue. Fiquei em pé, olhando fixamente a mancha vermelha e um pingo sangrento saiu bem do meio das minhas pernas. Sentei no vaso, ainda incrédula e fiz xixi. Meu xixi era meio amarelado ou meio transparente, dependendo da quantidade de água que tivesse tomado, mas, naquele dia, tinha um mar VERMELHO lá dentro.

Vesti a roupa e gritei por minha mãe. Ela veio apressada. Abri a porta e seus olhos estavam esbugalhados. Apontei para o vaso. “Ah, Fernanda, você virou mocinha.” Minha mãe achou incrível algo que eu, particularmente, odiei. Não sou boa em lidar com situações inesperadas. Chorei, chorei e chorei sentada na tampa do vaso. Lita apareceu depois para ver o que estava acontecendo e ficou sorrindo quando me viu chorando.

Bem queria que fosse comigo – ela disse. Lita sempre foi assanhada.

Trinta minutos depois, eu seria obrigada a usar uma espécie de retângulo feito de algodão, com pontas arredondas, dentro da minha roupa. Usei, sob protestos. Quem já viu? Por onde só saía xixi, do nada, começa a sair sangue e eu ainda teria que usar aquela coisa estranha que minha mãe chamava de modes. Modes?

Pare de reclamar, minha filha. Faz parte do seu crescimento como mulher. Mulher? Ontem mesmo, eu pedi para ir a uma festa com minhas amigas e ela disse que eu era muito nova, um bebê.

Passei o domingo verificando no espelho se o novo acessório era realmente imperceptível, como minha mãe dizia. O tecido da calça do colégio era fino, eu não podia arriscar chegar à aula e todo mundo ficar sabendo o que tinha acontecido comigo. Olhei todos os meus ângulos. Para alguém perceber que havia um pequeno volume ali, eu precisava inclinar meu tronco inteiro para baixo, elevando toda a parte de trás. Fiquei mais tranquila.

Mãe, por favor, não conte a ninguém – eu pedi. Não se preocupe, filha – ela falou.

É triste descobrir que sua mãe é capaz de mentir. Minhas tias, a vizinha, as professoras… ela contou para todas. Me senti traída. Duramente traída por minha mãe. Não entendo como, até hoje, ela acha que não fez nada demais.

Dois dias após a Mê aparecer na minha vida, seria o passeio da escola para comemorar o dia do estudante. Pensei em não ir. A minha capacidade de locomoção estava comprometida para evitar vazamentos, piscina nem pensar, desconforto na barriga. Aí lembrei de Daniel. Dois dias juntos no mesmo hotel. Trocas de olhares, sorrisos, abraços, quem sabe, numa sorte extraordinária, um beijo. Decidi ir.

Chegamos ao hotel. O que era aquilo? Uma metrópole com um quarto em cada bairro? O meu, que também era o de Lita, ficava logo na entrada. O de Daniel? Sei lá. Só consegui vê-lo no segundo dia, durante o café da manhã, acompanhado de Júlia. Ela parecia uma modelo, com o rosto desenhado nas proporções exatas da beleza. Quase chorei. Pensei em voltar para o quarto, passar pó, blush, rímel, sombra e um batom bem vermelho. Mas quem eu queria enganar? Eu nem sabia me maquiar direito. Júlia ia continuar igual a uma modelo e eu um tipo de pessoa estranha que, logo cedo, aparece com o rosto cheio de pó e a boca vermelha. Peguei um prato, coloquei pão, queijo, presunto, croissant, bolo de chocolate e biscoitos com açúcar granulado por cima, contrariando todas as dicas da nutricionista, só de raiva, e fui para a mesa ao lado deles.

Se dona Josefa não tivesse aparecido mandando a gente entrar, teríamos ficado até de manhã. Foi demais! Júlia falou enquanto comia um minúsculo pedaço de maçã.

Foi incrível mesmo. Pena que esse passeio acabou tão rápido. Daniel concordou com ela.

Não acredito que eu e Lita, depois de duas horas de viagem, ficamos assistindo televisão enquanto os outros se divertiam. Que espertas!

Seria bom se sentássemos juntos na volta. Mas com essa conversa de assento marcado, para promover a interação de todos, não sei se vamos conseguir. Júlia falava quase pedindo para sentar no colo dele.

Mordi um pedaço do meu bolo de chocolate para manter a calma.

E eu, que sentei com Rodolfo. Dormi a maior parte do tempo para não ter que escutar as conversas dele sobre jogos de vídeo game. Espero ter mais sorte na volta. Daniel fez uma careta quando terminou de falar. 

Fiquei com pena de Rodolfo. É muito ruim quando você quer conversar e não tem com quem.

No final da tarde, já dentro do ônibus, para voltar pra casa, dona Josefa me entregou a plaquinha com o número 5, indicando o local onde eu deveria sentar. Andei até a metade do corredor para ver a poltrona com o meu número. Lita, que vinha trás de mim, apertou meu braço três vezes. O que parecia ter sido o pior passeio da minha vida, de repente, mudou. Daniel, sentado na poltrona ao lado da minha.

Oi – Daniel disse, sorriu e levantou para que eu passasse.

Sentei, cruzei as mãos e abri a boca umas dez vezes tentando iniciar uma conversa. O medo de ser um Rodolfo na vida dele impediu que eu falasse.

A viagem já tinha começado quando ele disse. Esse negócio de cadeira marcada nas viagens do colégio é a maior besteira, né? 

Ele quer saber a minha opinião? Ah, Fernanda, chegou a hora de a “mocinha” impressionar.

Acho. Um absurdo. Não temos o livre arbítrio de escolher onde queremos sentar. Você escolhe com quem quer namorar, casar, ter filhos e não pode escolher uma poltrona? Aprendemos a respeitar a liberdade e, na nossa própria escola, sofremos uma opressão dessa. Os professores dizem que devemos dar o exemplo. E qual o exemplo que eles estão nos dando, ceifando a nossa liberdade de ir e vir ao lado de quem queremos? É assim que começam os governos opressores, a escravidão e a desgraça do povo.

Daniel me olhava surpreso. Fiquei esperando um elogio. Não veio, só uma mexida discreta na boca. Quase um sorriso. Ótimo! Acho que gostou.

Necessitava de um copo d’água, mas não podia deixar a barreira do silêncio estragar a nossa aproximação, precisava continuar o diálogo e perguntar algo interessante. Demonstrar que minha beleza simples era complementada pela minha inteligência. E… nada. Nenhum pensamento que valesse a pena ser dito surgia na minha cabeça. Eu, média nove em português, não conseguia fazer uma pergunta. Se fosse sobre proparoxítona, paroxítona, oxítona, hiato, ditongo, tritongo, verbo transitivo, verbo intransitivo, seria mais fácil.

Aaaai!

Esqueci Daniel por um segundo e levei as mãos a barriga. Ele me olhou.

“O que foi? Você tá meio sem cor, vai vomitar não, né?”

Não, eu não ia vomitar. Era pior. Um bloco de pedra imaginário, provocando dores reais, atingiu meu estômago e a Mê pirou. Pensou que era uma cachoeira e começou a descer rio abaixo. Correnteza forte.

Não. É só o calor. Tá muito quente aqui. Eu posso abrir a janela mais um pouco? Você gosta de vento?

Ele balançou a cabeça confirmando.

Vento, quando entra em contato com a nossa pele, diminui a temperatura da área atingida, nos dando a sensação de frescor. É o que chamam de termodinâmica.

Por que eu estava falando de vento? Tanta coisa legal para dizer e eu fui falar de vento. Quem impressiona outra pessoa falando de vento, Fernanda?

Legal! Ele disse, fechou os olhos e dormiu.

Lembrei do que ele falou sobre Rodolfo. Será que… Não, com certeza, não. Foi um sono incontrolável, apenas isso. Sono verdadeiro. Sono e nada mais.

Fiquei grávida de quadrigêmeos e todos chutavam a minha barriga ao mesmo tempo. A cada buraco em que o ônibus passava, a dor era ainda maior. A viagem longa ao lado de Daniel passou de comédia romântica para filme de terror.

A tarde começava a ir embora, quando o ônibus estacionou na porta do prédio em que eu morava. Todos iam descer só quando chegassem à escola, mas como eu morava uma rua antes, o motorista fez o favor de parar. Péssima ideia. Levantei da poltrona e senti algo grudento. Outro jato de Mê desceu quando fiquei em pé. Vazou! Vazou mesmo! Vazou pra caramba! Daniel acordou. Tentei passar rapidamente por ele e ir embora.

CARACA! Ele falou.

O meu mensageiro celestial não entendia nada sobre interpretação de textos. Tantas orações, tantos pedidos… e ele não captou que a impressão que eu desejava passar era POSITIVA. Agora só faltava andar meio corredor com uma calça amarela suja de sangue. Perfeito!

Daniel segurou no meu braço. Pegue minha camisa, senão todo mundo vai ver, eu tiro outra da mala.

E você pensando que eu não tinha sorte.

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